M I G U E L S I M Ã O
ARTE CONTEMPORÂNEA
Sobre a queda... ou a sujeição da matéria
Por Marília Panitz
...Recebida a cruel denúncia, Hefesto encaminhou-se para a forja
Formando malignos projetos no fundo do coração;
assentou na bancada uma enorme bigorna e com ela forjou laços irrompíveis e indesatáveis
com que imobilizá-los no lugar. Depois de forjar a armadilha, cheio de ódio de Ares,
dirigiu-se para a alcova, onde estava a sua cama;
estendeu as malhas por toda a volta dos pés da cama e muitas delas
pendurou no alto do forro, como aranhóis, tão finas que não as veria ninguém,
nem mesmo um dos deuses bem aventurados, com tal arte as fabricara...
Odisséia, de Homero
Hefesto é o deus do fogo. Hefesto é filho rejeitado de Hera[1]. Hefesto, para Homero, é o marido de Afrodite. Hefesto é vítima de uma queda: tendo sido jogado do Olimpo por Zeus, tornou-se coxo. Hefesto é o maior artesão dos metais. É ele que faz da brutalidade da forja os finos fios da invisibilidade com que prende sua esposa adúltera e seu amante. Hefesto é o primeiro grande ferreiro, o grande artista do metal. A queda lhe oferece as profundezas como casa, lá onde o minério se forma. Sua bigorna e seu martelo produzem os fios que revelam as verdades.
Tripalium é o nome da exposição – e do conjunto de obras – que Miguel Simão produziu recentemente. A apresentação do conjunto em um ambiente de penumbra e luz dramática, não nos deixa esquecer a acepção da palavra latina. Se ela, por um lado, refere-se ao trabalho (este que implica esforço corporal intenso, para a sujeição da matéria), também nomeia um instrumento de tortura, utilizado na inquisição. Nesse clima sombrio é que o artista nos seqüestra do tempo presente, operando uma vertiginosa viagem ao passado remoto, das primeiras experiências da transformação do metal – entre a magia, a religião e a tecnologia.
Assim, o escultor do tempo presente se apresenta como herdeiro de Hefesto, dos grandes alquimistas, dos grandes escultores, produzindo obras à sua imagem e semelhança e, como eles, podendo cair em desgraça pelo amor ao simulacro que produziram em seu jogo de deuses.
Atento, porém, à estratégia da fragmentação, em seu trabalho, ele se livra da maldição, por operação metonímica (e muitas vezes metafórica, como na recorrência da imagem da bigorna). O belo, produzido pela ação de Miguel sobre a matéria, flerta com a abjeção. E com a incômoda sensação de reconhecimento imediato daquilo que a forma não conta, pois é anamórfica. Que intimidade com a matéria sujeitada é essa que experimentamos no contato com sua obra, se ela é tão “outra” em relação ao que nos recebe na experiência estética sensível?
Talvez o que defina tal proximidade (tão estranha) seja o fato de que o artista parece não separar a obra das ferramentas que a forjaram. Elas sempre estão presentes como complementação de sentido – em uma visita ao atelier, em uma conversa sobre o trabalho, ou mesmo na exposição – ocupam o mesmo espaço e o mesmo estatuto. Chegam a se metamorfosear de ferramentas em obras, como na série de objetos obsoletos que Miguel criou, há alguns anos, a partir de instrumentos de trabalho (tesouras, facas, cinzéis, etc.). Olhar aquela coleção, bela coleção, provocava a pergunta imediata: para que serviriam tais aparelhos?... E a deriva do pensamento imaginava respostas (no meu caso, todas levavam a instrumentos cirúrgicos como equivalentes a instrumentos de tortura[2]).
Miguel é um escultor. Cultiva a tradição da escultura em suas técnicas específicas. Entalha a pedra e a madeira. Modela seus moldes que serão preenchidos por metal fundido ou por resina (esta sempre transparente – materialidade ambígua frente aos outros sólidos).
A figura está sempre presente... em partes. Há uma forte carga erótica nas suas esculturas. Na pedra, formas fálicas. Na madeira, as curvas e dobras aprendidas do barroco se configuram em alusões ao feminino, como na elaboração para si do objeto/fetiche, investimento na transformação da matéria em objeto parcial, como forma de auto-investimento (nunca como regra, é claro... mas com uma predominância que reitera tal categorização). Ao metal, a reificação do estatuto do inorgânico: é coisa, é objeto, é função subvertida em aesthesis.
A transparência da resina, aí, parece jogar o jogo da negação de toda a solidez das matérias/ esculturas que saem das mãos (e das máquinas e ferramentas) do artista. Ora preenchendo espaços vazios em torno da matéria sólida, criando uma armadilha para o olhar, ao retirar o peso suposto do objeto e deixá-lo flutuando naquilo que pode ser lido como água, ora contornando o vazio onde houve antes a escultura, deixando ao observador a suspeita de adivinhar ali o peso do artefato ausente: esculpir o negativo e preenchê-lo com luz (e em alguns casos, pelo acaso da cor, resultante da reação química dos materiais que o artista combina...
O atelier de Miguel Simão ocupa uma das salas do prédio da Maquete, pertencente ao Instituto de Artes da Universidade de Brasília, onde ele é professor. Preenchida quase completamente por estantes, armários e maquinário, a sala/atelier desperta a curiosidade, ao primeiro olhar. O que é a matéria prima para este tipo de trabalho, além do metal, da pedra, da madeira e da resina esperados? Tantos pequenos objetos, tantas ferramentas (que ocupam esse duplo estatuto de instrumento e parte da obra) e os desenhos (que também ocupam um duplo estatuto: o de croqui, apontamento de idéias e o de obra). Há uma organização que não se lê de imediato.
Miguel inicia uma apresentação do espaço e do trabalho para mim. Há uma ênfase nos instrumentos que muitas vezes são criados ou alterados pelo artista. Essa é a questão essencial, a sujeição do material bruto em matriz poética. Há uma recorrência das referências ao corte, às lâminas (não se pode esquecer que ele conhece a arte da cutelaria). Suas alusões a tal trabalho de transformação remontam às operações medievais de transfiguração da matéria. Ele brinca com a idéia da opus magnum[3] alquímica. Suas experiências atestam a fascinação pela metamorfose – peça dentro da água, peças dentro do óleo, a preparação da resina (que, de todo, acaba se transformando em receptáculo da ausência do objeto, contorno de espaço negativo). Por outro lado, estabelece um protocolo pessoal para o trabalho: talha direta sobre a matéria. Mesmo quando há uso de molde de cera para a recepção posterior da resina ou do metal líquido, sempre existe o entalhe posterior, como um ato concreto de conservação da manualidade, lá onde já se apresenta o princípio da serialização.
No trabalho sobre a madeira, o artista retoma os princípios renascentistas: o bloco inteiro, o desenho sobre ele, o corte a partir do traço, até fazê-lo desaparecer. Conserva-se o protocolo, mas abandona-se a mimese. O que surge como forma, é deformação. E, depois, há o apuro no polimento, até que não reste nada do sulco da madeira, além de seu desenho na superfície. Existe, porém, o tratamento de algumas das superfícies de suas esculturas com furos – às vezes tantos, que criam a impressão de uma renda (de pedra, de metal ou de madeira). Curiosa opção, para quem aprendeu a polir como um tributo ao mestre Brancusi. Pergunto a ele sobre esse insuspeitado rendado. Miguel me fala deste procedimento escultórico que cria uma cor diferente no trabalho (e aí, não posso deixar de pensar na experiência háptica do olhar, isso que se poderia chamar de “cor tátil”), que produz um efeito orgânico em todo material. O que me leva a pensar em outros de seus trabalhos, nos quais renuncia ao acabamento em favor da cicatriz do corte, ou da corrosão do metal pela ferrugem. O que determinaria a mudança de procedimento?
Talvez, no percurso pelo atelier, seja possível classificar seus trabalhos em três grupos: as esculturas de ver (e tocar); as esculturas de vestir (e ser tocados por elas); e as esculturas de usar (instrumentos de desuso). Se o primeiro e o terceiro grupo já se definem pela nomeação, para o segundo, faz-se necessário um esclarecimento: Miguel tem produzido alguns trabalhos em metal que me parecem crípticos. Meio colares, meio adornos peitorais, à maneira das civilizações pré-colombianas, eles resistem à dupla função de adorno/proteção (mais uma citação a Hefesto?). O artista faz referência aos objetos relacionais clarkianos[4]. Uso compartilhado, desconforto e beleza compartilhados.Uma outra parada revela os desenhos, algumas fotos, trabalhos bidimensionais. Não me é possível vê-los de outra forma, além daquela que os associa à escultura. Como anotações, eles lembram certos códices, detalhados, explicados, acompanhados da escritura. Nas fotos, também o trabalho de transformação posterior com photoshop ou outros softwares de edição de imagem, sempre a idéia de transfiguração, sempre o desconforto da estranheza.
Pergunto ao artista sobre suas referências. Ele me responde com algo que me parece esclarecedor. Leitor de filosofia (não a contemporânea), é também um apaixonado por Borges. Estuda a transformação da matéria, mas não os deslocamentos de significação, tão caros a produção contemporânea de teoria da arte. De fato, inscreve-se no mundo como fazedor borgeano[5]. O ato é construção, a imaginação é construção... até a memória é instrumento de concretização do que não pode ser feito. O pensamento é matéria.
Todo espaço expositivo ressoa a atmosfera de altar. Quando o desenho da mostra lança mão da penumbra como recurso de criação de ambientação, a sensação de entrada em um recinto que não obedece às regras espaço-temporais do cotidiano (a cronologia e a espacialidade profanas, se quisermos ser rigorosos) parece ser potencializada. Perdem-se muitas das referências, muitas das distrações. Há uma espécie de suspensão que nos lança na instabilidade, onde as únicas âncoras possíveis são as obras.
Assim é Tripalium: penumbra com pontos reveladores de luz. O clima é barroco, as matérias expostas são barrocas. Mas a linguagem não segue a matriz alegórica esperada. É mais econômica, mais seca.
Primeira pontuação: a pequena vitrine triangular no vértice entre duas paredes. Dentro uma outra luz, um outro ambiente miniaturizado faz referências à história da arte a partir do exercício inaugurado por certa roda de bicicleta, de apropriação de objetos cotidianos.
Segunda pontuação: Três pequenas bigornas, entre tantas bigornas. Ouro, bronze, resina.
A partir daí, as grandes esculturas ocupam o espaço, descoberto nos fachos pontuais de luz. No nicho oferecido pela arquitetura da galeria, o altar laico do observador (que é auto-retrato). E que está entronizado? As figuras parciais, evocação do feminino. No centro, novamente a bigorna, agora transparente, sem peso (sem função)... pura forma.
No outro lado da galeria, a vitrine que mais uma vez subverte em preciosidade a matéria cuja função é de ferramenta.
Uma terceira pontuação: ao fundo, uma luz direciona o olhar para cima. No escuro da parede negra, uma reentrância. Nela uma cabeça, vermelha, quase a imagem de um ex-voto. Dela nossos olhos são conduzidos ao que está embaixo. Unidades que se relacionam e criam uma lógica de instalação.
Mas o conjunto afirma aquilo que é: escultura recuperada... ainda.
Junho – dezembro de 2009
[1] Por ela, também amado. Esse é o moto contínuo de sua história. Zeus , que também o rejeita, oferece a ele a mais bela deusa , em casamento.
[2] Nunca pude olhar essa série sem me lembrar de um belo e intrigante filme de David Cronenberg, chamado “Gêmeos, mórbida semelhança” (“Dead ringers”, no original), em que um duplo Jeremy Irons, encarnando uma dupla de médicos ginecologistas, fustigam a sua amada (de ambos, ela experimentando o duplo, como suspeita, somente), vivida pela atriz Geneviéve Bujold, com aparelhos ginecológicos que buscam descobrir no seu corpo, aspectos da psique.
[3] Uma boa definição de Opus Magnum ou Grande Obra é a que a associa ao conjunto dos processos para se obter a Pedra Filosofal, arte de controlar os segredos capazes de transmutar fatores negativos em positivos. Ou, como a transmutação dos metais vis em ouro, princípio básico da Alquimia. Associa-se também ao conjunto de doutrinas secretas despercebidas aos olhos profanos, cujo campo de estudos é restrito ao sistema solar, o qual estaria intrinsecamente ligado a Deus e teria a Terra como centro. Daí dizermos que todo ser que habita o mundo seja uma partícula de Deus. A Pedra Filosofal é símbolo dessa unidade cósmica. Talvez se possa dizer que a metáfora usada pelo artista denuncie o desejo de transformação da matéria em algo que reinvente essa identificação do humano com as coisas do mundo. E fazer arte é algo diferente disso?
[4] Embora, dos originais, criados por Lygia Clark, não se tenha uma evocação direta. Os que são produzidos por Miguel Simão, parecem ocupar uma posição entre o adorno/defesa e as produções de Lygia. O aspecto receptivo destes últimos não está presente, mas está sim, uma idéia de funcionamento que exige, no mínimo, dois. Se não há o outro, a obra não acontece. E aos dois participantes, reserva-se o mesmo incômodo (numa oposição ao princípio de Clark, mas que o espelha).
[5] Como aquele “Fazedor” do conto de Borges, quando começa a ficar cego, com “uma insistente névoa que apagou as linhas de sua mão”, ele herda a lembrança infinita e repete a ação da qual não é capaz de se furtar. Pela obra da memória que não é sua, mas da humanidade, ele é Ajax, é Perseu, é Ares... e é Hefesto: “Nunca se havia demorado nos gozos da memória. As imprecisões deslizavam sobre ele, momentâneas e vívidas (...) Quando soube que estava ficando cego, gritou (...)Descendeu então a sua memória, que lhe pareceu interminável (...) A noite ofuscava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a ladeira íngreme que rodeava a casa e correu pela beira do mar, sonhando-se Ajax e Perseu (...)”.