
M I G U E L S I M Ã O
ARTE CONTEMPORÂNEA
Esculturas de Miguel Simão
Por Grace Maria Machado de Freitas
O percurso de Miguel Simão no campo da criação artística é visível e tátil em seu ateliê/oficina, verdadeiro canteiro de obras, espaço e lugar de um labor no qual se pode ler a subversão e a tábua rasa que é por ele conferida à dinâmica da arte moderna e contemporânea.
O artista trabalha com materiais diversos - metal, argila, cera, couro, fibra acrílica e até mesmo tintas e pincéis - e utiliza-se, seja de ferramentas existentes seja aquelas por ele adaptadas. Perceber que algumas de suas esculturas trazem elementos pictóricos, pela textura ou pela cor, em oposição à aspereza ou maciez dos materiais quando se combinam, é o que mostra a estrutura de seu trabalho, à primeira vista.
Seus pontos de inflexão perpassam por interrogações modernistas, especificamente o dadaísmo, o surrealismo, o modernismo brasileiro e o próprio conceito de Brasília. Deles emergem ora discussões sobre arte/política/estética, ora sobre arte/ciência/ tecnologia, Brasília e dilemas sobre anacronismo; Miguel Simão percorre vários eixos temáticos diferentes para a elaborar a sua própria metalinguagem.
O trabalho que o artista desenvolve rompe com diferenças, mesmo nas questões que tratam de identidades sexuais definidas ou de classificações ambivalentes - às vezes se iniciando pelo título de algumas delas, como os do Heroínos – Seu trabalho se desenvolve na verticalidade - figura humana, fetiche, catedral - ou na horizontalidade -, diagramas e ferramentas deslocadas de seu uso.
Hoje, assistimos a práticas que atingem - ou pretendem - diretamente, liberdades individuais de escolha sobre o que ser, o que ver, o que ler, o que aprender, como viver. E neste lugar, lugar de fazer e pensar a arte com tudo aquilo que ela própria pode provocar e ser disseminada pela sua força, é que a arte de Miguel Simão incide.
Desestabilizar polaridades tradicionais do masculino e do feminino, trazer novas configurações éticas e formais situadas além das diferenças são parte de seu pensamento artístico. Macho/fêmea, fêmea-macho, mulher/homem, homem-mulher, feminino/masculino, androceu/gineceu ou ovário/testículo, tem diferenças que são borradas e apontam para a sexualidade humana. O que seria o determinismo anatômico? Ou mesmo, a presença ou ausência de um pênis?
Para o artista, não se trata de estabelecer uma questão psicanalítica. Trata-se de modelar corpos, mostrá-los tais como os percebe. Entende que o poder da arte é subversivo e não autoritário, conectando a habilidade de fazer com a de ver e daí o poder de fazer com que outros vejam e, por consequência, possam fazer algo com o que veem, e assim por diante. Há algo provocado, alguma emoção bruta que move e inspira. Sem sentimentalismos, Miguel Simão oferece uma relação direta com o espectador interrogado com provocação e violência em muitas obras - para uma experiência intensa, vetor do dinamismo da arte. Realismo político ou sexismo, tanto quanto racismo ou até mesmo classicismo, não são invisíveis na sociedade. Às vezes são gritantes, ou gritam em silêncio, e se escamoteiam em uma invisibilidade forçada.
Rosalind Krauss discorre sobre sua paixão pelo surrealismo e a maneira pela qual escultores e fotógrafos, tais como Brancusi, Giacometti, Magritte, Bellmer ou Man Ray e Dora Maar ...- ovóides, gaiolas, garrafas, chapéus, sapatos, pêlos e outros objetos -, foram metáforas que se tornaram temas do aprisionamento do corpo feminino e projeção de violência contra este corpo. No outro extremo, Miguel Simão trabalha com uma estratégia particular evidenciando corpos com tratamento realista, e diferentes gêneros: aprisiona-os em outros receptáculos, sob formas legíveis. Não se trata de misoginia nem de falocracia. O que o artista mira é a exposição, nua e crua, de corpos sexualizados.
Nesse eixo, o artista cria esculturas de corpos masculinos e femininos, mas, também, de hermafroditas: essas não são como aquelas esculpidas por gregos ou latinos que, em grande parte, elaborava-as sobre um leito, inclinados para um lado, ocultando o sexo; sequer como Marcel Duchamp em Rrose C'est Ia Vie ou La Mariée Mise a nu par ses Célibataires, Même.
Faço uma pequena digressão para um estudo do psicanalista M.D. Magno no qual faz uma aproximação entre as representações clássicas com a Vênus ao Espelho, de Velazquez, na qual Cupido lança seu olhar para o sexo da personagem, que posa de costas, como os hermafroditas gregos ou latinos, que, por sua vez, olham pelo espelho o mesmo alvo: seu sexo. Só eles sabem - e veem -, aquilo que está oculto pela posição dorsal. Assinalo que artistas clássicos também esculpiam este tema em poses frontais.
Periodicamente, artistas de todos os tempos recorrem a figuras míticas do andrógino ou hermafrodita para apagar ou deslocar a diferença sexual.
Perversão ou normalidade? Ou uma sexualidade plural, desconcertante; como é sua constituição? Ou pulsão? Ou libido? Isso é com Sigmund Freud, não é aqui que se responde a esses questionamentos, alguns dos que são dos muitos provocados ao olhar, pelas esculturas de Miguel Simão.
Elas atingem o olhar também pela contemporaneidade do tema: gênero/sexo. Sabe-se que gênero é uma construção cultural relacionada ao sexo e a antropologia se apropriou de noções daí derivadas: identidade, papéis, ideologia ou expressões de gênero. Sexo: masculino ou feminino, isto é, refere-se à biologia ou à anatomia. Entretanto, um e outro implicam em sexualidade que, por sua vez, tem a ver com erotismo - amor, desejo e gozo-.
Miguel Simão e, creio que seu duplo, Dr. Simon Coast, escavam essas esculturas não para serem expostas soltas no espaço ou sobre algum pedestal: os corpos estão nus ou seminus - alguns usam meias ou lingeries que permitem mostrar e esconder, velar e desvelar partes do corpo -, mas também, estigmatizados pela violência que os mantém em cativeiro pela sociedade. Trata-se de figuras emblemáticas e ambíguas, que expõem faces do desejo masculino: mulher oferecida/comprada/ por um lado e, mulher amada/ virgem, por outro: são corpos aprisionados em caixas-vitrine ou encapsulados.
A arte é um universo de liberdade, lugar onde o artista é livre para descrever suas próprias fantasias: olhar o que não se deve, mostrar o que não pode ser visto, são as duas faces que o desejo impõe ao olhar que, por sua vez, é penetrante e penetrado, atravessado pela atração/repulsa/temor, naquilo que concerne a sexualidade.
Ainda neste eixo, o escultor cria objetos fetiche ou objetos parciais. Além de falos, há sapatos e botas monumentais e, às vezes, vermelhas. Quando em bronze, adquirem peso e estabilidade. Em fibra acrílica, leveza e altura. São esses os acessórios que se tornam elementos principais- fetiches -, que em algumas esculturas deslocam e condensam formas, meio animal, meio masculino, meio feminino, tal o objeto que eles representam como substitutos.
Parte de suas composições são voltadas para algumas das questões do ofício de escultor. As próprias ferramentas utilizadas são retiradas de sua função principal e se constituem material para outras composições. Estratégia do ready-made, o artista desloca-as, transfigura-as e as retorce para pousá-las sobre o pelo do couro de bode, na organização de uma geometria que opõe o macio do couro, com o áspero, do próprio material.
Há um elemento recorrente, entre outros, que é a bigorna. Esta peça de ferro sobre a qual se moldam metais, através de um desvio de função, adquire vida própria: por vezes ela é monumental, vermelha, e, assume a contradição de se mostrar leve e flutuante em um espelho d'água; por vezes, suas extremidades de pontas cilíndricas faz evocar algo híbrido, ou seja, um animal, pernas e patas.
Por outro lado, a instalação denominada Água, Terra, Ar e Fogo. Nesta, o espetador é surpreendido por uma representação matricial dos quatro elementos e suas mutações. Tecnologia milenar e as possibilidades infinitas que se desenvolvem ao longo dos tempos. Lá está, à vista, em cada um dos suportes, ou sob eles, alguma instrução abstrata sobre como eram usados e transformados e fotos digitais: ali, são tempos que se entrosam entre uma low e hight techs.
Paralelamente, Miguel Simão elabora diagramas que, a uma certa distância, se dão a ver quase como hieróglifos, manuscritos davincianos ou anotações duchampianas. Aproximados, mostram-se em toda plenitude: desenhos e palavras são matérias que são construídas no avesso do couro de bode que aí confere uma coloração de pergaminho onde traços e signos são escritos e riscados a ferro e fogo. Há um léxico em maiúsculas, S I D E R A L, pois é disso que se trata: associações de palavras em uma escrita automática, aleatória, que por vezes estabelece uma taxiologia, um vocabulário próprio aos artistas, cientistas ou tecnólogos para trabalhar com os quatro elementos, cônscios de que esses jamais serão extintos.
Miguel Simão e seu duplo, Dr. Simon Coast sintetizam a arte que criam e o ofício que praticam e estabelecem uma relação direta para oferecer uma experiência única ao espectador, que por eles é interrogado através de intensidade e provocação, vetores do dinamismo da arte que produzem.
Brasilia, novembro, 2018.