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A Estrutura do Escultor

A origem

Nascido no dia 25 de fevereiro de 1960, signo de Peixes, em Araguari-MG, cidade situada no Triangulo Mineiro e de forte vocação agrícola. Vale ressaltar que o Triangulo Mineiro não tem nenhuma relação com a “transcendente” Minas Gerais das montanhas, do ouro e da arte, o Triangulo é somente geometria - plana. Tive seis irmãos, sou o mais novo.

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Minha mãe era uma mulher muito bonita, era branca. Ela cursou até o ensino médio em uma escola católica casou-se e passou a cuidar da casa levando uma vida absolutamente doméstica. Trabalhava muito e tentava cuidar dos filhos na medida do possível. Minha mãe, enquanto fazia as atividades domésticas, gostava de cantar e assobiar antigas canções, eu adorava principalmente uma que dizia: “ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor...”. Nos últimos anos da sua vida ela não mais cantou nem assobiou, morreu demente e apenas se lembrava da própria infância.​

O meu pai, era cafuzo, teve uma educação formal muito boa para aquela época. Ele era filho de fazendeiros e teve a chance de estudar em um internato católico famoso em Minas Gerais.

Depois de concluir o colégio foi para o Rio de Janeiro para estudar na Escola de Medicina da Praia Vermelha. Enquanto estudava também lecionava matemática no Colégio Pedro II. Nesse ínterim já havia eclodido a II Guerra Mundial para a qual ele fora convocado. Saiu do Rio e ficou aquartelado em Olinda durante dois anos. Não chegou a ir para guerra, mas sua vida daí pra frente virou numa batalha. Finda a guerra voltou direto para Minas Gerais. Não retomou o curso de medicina, casou-se e tornou-se por força das circunstancias professor de matemática no colégio estadual da cidade. Trabalhava os três turnos e pescava aos sábados e feriados. Com o passar do tempo tornou-se um homem muito duro, moralista e amparava-se na doutrina maçônica, da qual se tornou membro devoto. Mensalmente publicava uma crônica de costumes num jornal local, era bem conhecido na comunidade, inclusive tornou-se vereador. Após sua morte deram o nome dele a uma rua da cidade. Ele foi odiado e amado por alunos e pelos filhos e teve uma vida comum e remediada como quase todos araguarinos de então. É o que se sabe sobre este homem.

A infância

Até os 10 anos de idade eu morava em uma pequena rua que começava na igreja matriz, antigo centro da cidade, e terminava ao se encontrar com uma avenida inacabada cujo traçado praticamente delimitava a cidade da zona rural. A rua da minha meninice é muito tranquila até hoje, nos anos sessenta ela era melancolicamente calma. Das memórias que eu tenho deste período minha vida uma, particularmente, chama a atenção: uma cena que, embora se repetisse todos os anos, era bastante peculiar. No mês de agosto ou setembro, não me lembro bem, a quietude entediante da rua era rompida pelo tropel de cavalos, três ou quatro dezenas destes animais e sobre eles leprosos montados, eram famílias inteiras de acometidas pela hanseníase. A comitiva configurava um bizarro desfile. Embora fossem todos mutilados e deformados havia algo de alegre naquele cortejo, algo caloroso, dava vontade de aplaudir, de agradecer. Creio que a combinação de homem/cavalo quebrava a visão chocante daqueles corpos combalidos enrolados por trapos. Dizia-se que eles viviam em colônias isoladas e saiam algumas vezes por ano para arrumar comida e dinheiro. Naquelas ocasiões minha mãe já deixava preparado um sortido farnel de mantimentos, um saco de roupas velhas e algum dinheiro para dar aos pedintes cavalarianos.

O cosmo I - Ptolomaico
A minha rua - vim saber depois estudando história - mantinha muitas das características das antigas vilas coloniais e fragmentos medievais. Além do séquito de leprosos era frequente passarem boiadas e tropas de velhos cavalos rumo ao abatedouro. Tinha também loucos que andavam livres e matilhas de cães vadios. As carroças pontuais do padeiro, do leiteiro e do vendedor de lenha marcavam com precisão a morosidade daqueles tempos. Ladainhas de velhas carolas, novenas, procissões iluminadas com velas carregando imagens de um cristo morto, reforçavam a ideia de outro tempo dentro do tempo presente. A modernidade somente despontou na minha rua por meio uma única televisão que ficava em uma casa do fim da rua de onde viam vagas notícias do mundo; HOMEM FOI À LUA, HOUVE UM GOLPE MILITAR e outras manchetes completamente inaudíveis pra mim naquele tempo.

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 A performance

Nesta época houve um acontecimento decisivo que alterou profundamente o rumo da minha vida. Foi em um domingo, dia de missa, dia de roupa boa, dia de ser visto e de observar. Lá estava eu na Igreja Matriz sentado em um banco de madeira olhando para o teto muito alto e em forma de cúpula românica, quando uma pomba resolveu cagar na minha cabeça em plena missa das 10h, a mais concorrida de todas. A merda esbranquiçada espatifou na minha testa. Ela caiu tão veloz que quando bateu na minha testa espalhou-se circularmente atingindo pessoas ao meu redor. Foi uma insanidade, nunca tinha sido tão exposto como naquela ocasião.  A missa parou para que todos pudessem rir de mim, aquela corja de cristãos misericordiosos não me poupou, acho que até o padre riu. Os momentos imediatamente seguintes e a maneira de como eu sai do local foram apagados da minha memória, tal foram os sentimentos evolvidos. Nunca mais voltei à igreja depois daquele retro-batismo. Depois do ocorrido os meus domingos ficaram mais entediantes, mas, em contrapartida iniciei o meu longo caminho de rompimentos: o cristianismo e demais religiões foram os primeiros... Mais tarde - bem mais tarde - li um poema Fernando Pessoa onde ele descrevia o Espírito Santo como uma pomba que vivia sujando tudo por onde passava. Li e fiquei quieto. 

O mecenato

Uma das minhas irmãs morreu há alguns anos, ela tinha cinquenta e poucos anos e era mais velha dos irmãos. Tivemos uma profunda, conturbada e contraditória relação ao longo de vários anos. Amor, dominação, cuidado, crueldade, amparo e hoje uma imensa saudade. Ela herdou do nosso pai características étnicas muito acentuadas, era a negrinha, como dizia nossa mãe. Perspicaz, muito inteligente saiu de Araguari pra trabalhar em Brasília, ganhava um bom salário e não poupou esforços ajudar a vida da família, aliviando a dura situação dos meus pais. Ela foi a minha grande patrocinadora nestes anos iniciais em Brasília, ela sabia o que eu era me aturou como mãe atura um filho, eu nada fiz por ela. A vinda desta irmã para Brasília traçou meu destino.

A partida
Em 1979 desembarquei na rodoviária de Brasília, vim para estudar na universidade e morar com minha irmã – eu estava matriculado no curso de bacharelado em História – UnB. Egresso de um colégio estadual (do qual meu pai era diretor) onde estudei o ginasial e o colegial, a minha entrada na universidade foi um desastre total, sobretudo nos primeiros semestres. Eu nada entendia. Ditadura militar in loco, sociologia, metodologia, movimento estudantil, o materialismo dialético, as drogas, o aborto-elétrico e a música dodecafônica. Tive que me refazer de cabo a rabo para poder existir neste novo mundo, novo pelo menos para mim. Tensões profundas entre o que eu era e o vir a ser.

Opiário 

Beber foi à ação mais constante e mais disciplinada que tive nestes primeiros anos de Brasília, uma longa trajetória, uma mediação entre os meus sentimentos e a crueza da realidade que, num dado momento, foi à única solução para ter coragem de enfrentar as enormes barreiras sociais, econômicas e intelectuais que me separavam da vida brasiliense e da vida universitária. Os sentimentos de inferioridade e o comportamento paranóide me maltrataram bastante, recuei várias vezes. Primeiro abandonei o curso de História, fui para o departamento de artes, do qual eu ignorei a existência por muito tempo. Nunca tinha passado pela minha cabeça que se fazia arte na universidade. Foi bom ter encontrado aquele novo ambiente, as tensões diminuíram e lá eu podia ser mais instintivo e podia aproveitar as minhas experiências vividas na infância e adolescência, pois sempre desenhei e fiz pequenas esculturas enquanto morava em Araguari. Mas durou pouco este encontro, ainda vivia acuado e com uma imensa dificuldade de assimilação formal de conhecimentos, que para mim, eram exóticos. Recuei novamente e desta vez abandonei a universidade e fui para a cidade viver sob outra ótica.

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O subterrâneo

Fui trabalhar como garçom num bar/livraria muito famoso na sua época. Passei a viver uma vida social muito intensa fora da universidade, casei-me, aluguei um ateliê, me infiltrei na malha social da cidade, das famílias e das elites econômicas, observei bastante todos os comportamentos, todas as motivações e os interesses que moviam este mundo totalmente desconhecido para mim. Trabalhei também num empreendimento de comércio de antiguidades e arte durante muitos anos. Percebi ali o alcance da instituição da arte e suas contradições e complexidades. Na cidade eu encontrei tudo que precisava e a universidade ficou distante, tanto quanto Araguari. Transcorreram dez anos desde a minha chegada em Brasília, anos duros. Eu era ainda um clandestino e para poder me reconhecer tirava fotos frequentes em algum lambe-lambe da rodoviária, olhava as fotos gravava na memória pra ver o que durava até a próxima fotografia. Será que nunca mais eu me reconheceria?

O cosmo II

O primeiro ponto base nestes conturbados anos foi o espaço urbano e a arquitetura. A beleza no seu sentido mais profundo em todos os lugares - novidade na minha vida - na verdade eu me sentia dentro da própria beleza. Embora com todas as dificuldades eu me sentia muito conectado como se esta cidade fosse algo primordial e absolutamente natural, não recusei nada e até hoje vivo este deslumbre. Eu fazia longas caminhadas, depois arrumei uma bicicleta e as coisas ficaram muito melhores. Com a velocidade da bicicleta o desvendar da cidade tornava-se inebriante. Aqui eu podia me localizar no mundo (newtoniano): gravidade, massa, peso, norte, sul, nascente, poente e o céu. São anos de investigação e vivencia muito solitária. Ainda hoje, o fim do verão é pra mim o momento mais revelador desta cidade. Inexplicavelmente - neste período - a paisagem urbana evoca lembranças irreprimíveis da minha infância vivida lá ao longe, lá no Triangulo.

O graduado

E nesta época também descobri o cinema. Vi tudo que era disponibilizado, o cinema foi minha elevação, me eduquei via imagem/movimento. Com ele eu pude refletir sobre a estética, a criação e a vida/morte. O cinema é sempre presente, re-assistir Eisensttein é sempre uma inauguração. O cinema me distendeu e lirbertou-me do entrave e o pedantismo acadêmico – ligado eternamente à história das elites do hemisfério norte das quais somos sempre devedores.  

O exilado

Adiei a minha re-entrada na universidade por sete anos, quando retornei eu já era outro – a universidade também havia mudado. Com o advento da distensão política foi possível o retorno dos exilados e de antigos professores que foram expulsos das universidades pelo regime militar. A UnB recebeu de volta vários professores, muitos deles artistas profissionais, que deram uma

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injeção de entusiasmo e renovação do pensamento a cerca da arte, mais no aspecto da práxis do que nos meandros acadêmicos propriamente ditos. Voltei para a universidade exatamente neste período, sorte minha, eu estava pronto depois de dez anos de auto-formação.  A partir daí as coisas fluíram com relativa tranquilidade.

O bacharel

Finalmente formei-me bacharel em pintura. Um ano depois fiz uma imensa fogueira e queimei tudo, dezenas de telas viraram cinza, mas ninguém perdeu nada, nem mesmo eu. Aquelas telas pareciam com arte. Voltei a ser escultor como na infância e nunca mais fiz nada parecido com arte. E é a partir daí que começaram a surgir as obras que agora lhes apresento neste site.

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